Era novembro quando sentei na minha mesa de casa depois que as crianças tinham dormido. Eu estava muito angustiada com o rumo que o maio ia tomar, como que as coisas iriam acontecer e em que tom iríamos vociferar a campanha em 2023. Há meses eu andava desconexa e bloqueada. Nem uma palavra saía, uma palavra não entrava na outra, as emoções não se dialogavam e meu peito era um terreno sombrio de ausência de sentido e excesso de sentir. Talvez por tudo o que estava acontecendo na minha vida pessoal, talvez pelo cansaço, talvez pelas rusgas da vida, pelo sentimento de abandono que me visita de tempos em tempos, pensava eu.
Lá, naquele momento de angústia em novembro de 2022, tudo era somente ausência de sentido e muito sentir. Eu estava desenhando quando minha própria voz me assombrou, assoprando uma mensagem: onde há amor, não há dor. E então, como a linha que costura os retalhos gerando um cobertor quente para suportar o inverno, fui tomada pelas vozes das mulheres que já atendi, suas dores, reivindicações e inconformismos, frases e anedotas delas que ecoam em mim, sons de acalantos e cantigas ao meio da noite, o cheiro do leite azedo pelas manhãs, imagens de muita água, sons de batucada de gente alegre e a imagem de uma gigante maestrina dando o tom. Uma senhora de olhos vivos, punhos firmes, corpo farto que me assoprou no ouvido: escreva.
Fechei os olhos e tudo começou a ter contorno. As palavras foram se encaixando e, uma a uma, as imagens ganharam o papel: vi um quarto solitário e escuro, permeado de dor, silêncio e depressão, da onde se levanta uma puérpera que abre a janela, deixando a luz entrar; a cantiga de ninar entre lágrimas dá espaço ao som potente comandado pela ideia de que ela tem muito poder para transformar as dores. Porque se há amor, não há dor. Onde há amor, não há dor. Não pode haver dor. Não cabe, não orna. Não há espaço. Pensa ela. Ela crê. Ela transforma. Ela manda a dor embora e a luz entra. Ela rege. Ela É a gigante maestrina da nova era.
Foi mais ou menos assim que nasceu o Manifesto 2023 do Maio Furta-cor. De uma angústia inquietante ao não menos angustiante contorno das palavras.
Ele é a voz de tantas mulheres e um pouco do que cada uma de nós, em algum momento, sentiu em seus puerpérios. É a mais pura materialização dos inúmeros pedidos de socorro, mas também da força da mudança.
O Manifesto 2023 é uma denúncia, mas antes disso, é a fé no amor: é minha carta de amor pelas mulheres que atendo todos os dias e a confiança absoluta na nossa capacidade de reger um mundo melhor.
Baixe aqui o manifesto Maio Furta-cor 2023:
Patrícia Piper
Idealizadora da campanha Maio Furta-cor
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